RPG a la Carte

A contra-cultura do RPG

Pessoas em volta de um mapa de hexágonos

Feito com Leonardo AI

RPG Além das Cenas Teatrais com Hexcrawl

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Se você está acostumado com Cellbit, Nerdsbonde, Critical Role e outros milhões de projetos com lives sobre Dungeons & Dragons 5ª Edição (D&D 5.0) você percebeu uma coisa. Provavelmente, você experienciou o RPG, seja assistindo-os ou mesmo repetindo como eles jogam, como uma mistura de ação, interpretação de personagens e momentos cinematográficos. Esses momentos, frequentemente chamados de “cenas”, são onde jogadores e mestres criam momentos épicos de narrativa, diálogos emocionantes e até performances teatrais com vozes, manias marcantes e muitas vezes fantasias para os personagens.

Mas existe um jeito diferente — e mais antigo — de jogar RPG, na qual a interpretação teatral existe, mas fica em segundo plano. Em vez disso de cenas, a experiência se constrói a partir da exploração, das escolhas, gestão de recursos e de suas consequências diretas. Esse estilo se chama hexcrawl, e pode ser uma alternativa para jogadores que buscam algo além de toda teatralidade de vozes e maneirismos de RPG de lives costuma oferecer.

Neste artigo, vamos explorar o que é hexcrawl, como ele funciona, e por que ele pode ser uma experiência transformadora para quem só conhece o lado teatral dos RPGs.


Personalidade e Representação de Personagens no RPG

Antes de mais nada, faz sentido olharmos para o que significa personagem e personalidade em um RPG já que uma das maiores diferenças de um jogo hexcrawl para um jogo moderno envolve esses conceitos. Personagem é uma entidade dentro de uma história. Ela tem uma personalidade, ou seja, um conjunto de comportamentos, pensamentos, sentimentos e falas meio padronizadas. Diante de uma situação, conhecer a personalidade de um personagem é prever com certo nível de certeza o que ele faria. Em RPG, a personalidade está intimamente ligada às letras RP da sigla. Role-play significa representar essa personalidade, ou seja, significa vestir uma roupa diferente da roupa do dia a dia.

Representar um personagem, por sua vez, é dar vida a essas características por meio de decisões, interpretações e interações. É o que nos faz sentir o que sentimos ao jogar além do que acontece em outros jogos puramente… jogos. É possível inventar um tipo de general ao representar as ações de um jogo como War, mas o role-play não é um fator crucial como em RPGs. Em jogos modernos, a personalidade geralmente nasce de elementos pré-definidos, como talentos, atributos e poderes. Esses detalhes técnicos se combinam com trejeitos e vozes que os jogadores criam para interpretar seus papéis, frequentemente em cenas roteirizadas ou momentos dramáticos planejados pelo mestre.

No hexcrawl, a construção da personalidade segue um caminho diferente e mais orgânico. Nele, a personalidade do personagem emerge das escolhas feitas pelos jogadores e das consequências que enfrentam. O guerreiro não é definido apenas pela força ou pela habilidade em combate; ele é moldado pelas decisões que toma — proteger um aliado ferido ao custo de sua própria segurança, arriscar-se para explorar uma ruína desconhecida ou até mesmo abandonar um tesouro para garantir a sobrevivência do grupo. Em vez de forçar características por meio de vozes ou manias, a personalidade é nutrida pela experiência de jogo, ganhando profundidade a cada decisão significativa. As características teatrais podem então surgir como consequência e não antes das decisões e acontecimentos como nos jogos modernos.

Essa diferença de abordagem transforma a experiência de representar um personagem. Em jogos modernos, a interpretação tende a se concentrar na criação antecipada da personalidade. Como se comporta em cena é definido ANTES de tudo, enquanto no hexcrawl o foco está no que se apresenta. A personalidade então EMERGE DEPOIS do que acontece. A personalidade deixa então de ser algo antecipado e pré-determinado para se tornar o resultado de uma narrativa emergente. Definir sem experimentar significa limitar a experiência. Experimentar para definir pode deixar-la muito mais rica.

Afinal, como o Hexcrawl faz isso?

Um hexcrawl é um tipo de RPG que se baseia na exploração de um mundo desconhecido dividido em hexágonos (ou “hexes”) em um mapa. Cada hexágono representa uma região do mundo do jogo. Os jogadores nesse tipo de jogo decidem qual direção seguir, enfrentando desafios e descobrindo novos elementos pelo caminho.

Em geral, jogos hexcrawl são jogados utilizando o espírito OSR, ou seja, menos regras, menos opções de habilidades, menos poderes e competências. Assim, o foco narrativo sai um pouco do indivíduo e o que ele tem potencial de fazer e passa para o que ele acaba fazendo. Afinal, os PVs assim como os recursos básicos como água e comida são escassos! Cada escolha ganha um peso diferente daquelas feitas em um mundo abundânte de opções como o de RPGs modernos.

O foco então não está em interpretar cenas dramáticas, mas em sobreviver à “Grande Vastidão”. Isso representa desbravar uma terra desconhecida, enfrentar criaturas perigosas e, de uma forma importante e central, explorar ao mesmo tempo que se gerencia recursos como comida, água e tempo. Cada decisão tem um impacto direto na história, e os resultados não são apenas emocionantes — eles criam momentos inesquecíveis.

No que diz respeito a interpretação, foco de muita gente que joga RPG, o hexcrawl cria oportunidades para que a personalidade se manifeste. Isso é diferente em jogos por cena, já que neles a personalidade é construída de acordo com o que o jogador deseja para aquele personagem. A imersão não vem de grandes diálogos ou performances teatrais, mas de decisões difíceis, exploração meticulosa e do peso real de cada escolha feita pelos jogadores. A personalidade não é criada. Ela emerge.

Em ambos os casos, a história emergiu junto com estímulos que alimentarão certos aspectos da personalidade dos envolvidos. Nada poderia prever com sucesso o que aconteceria. Essa é a beleza da emergência de conteúdos, sejam eles personalidade, escolhas ou locais.


Uma Breve História dos RPGs: Da Exploração às Cenas

Se olharmos para o início do RPG, como em Advanced Dungeons & Dragons (AD&D), os jogos eram fortemente baseados em exploração, sobretudo de masmorras. Os jogadores navegavam por mundos cheios de mistérios, se preocupavam com recursos limitados e enfrentavam desafios imprevisíveis. Não havia “cenas” no sentido cinematográfico.

Com o tempo, especialmente a partir de D&D 3ª Edição, o foco começou a mudar. Provavelmente mudaram devido à quantidade absurda de opções de personalização em comparação com as versões anteriores. O fator “simulação” aumentou paralelamente ao número de customizações possíveis. Os jogos passaram então a ser estruturados em cenas narrativas. Os personagens viviam momentos que pareciam cutscenes de videogame ou retirados de um filme ou de um livro, usavam todos os seus poderes e competências para depois viverem a próxima cena. Isso fez com que a atenção das pessoas saísse da escassez de recursos e do risco das decisões. Permitiu com que os personagens se tornassem mais heróicos, prontos e plenos. A atenção então pôde passar para a interpretação teatral, incluindo o uso de vozes para personagens, trejeitos e até um foco maior em personalidades e histórias individuais (quem nunca fez uma história de personagem de nível 1 com 10 páginas?). Afinal, qual a graça de se criar um personagem tão poderoso se não for para contar o que ele é capaz?

Essas mudanças ajudaram a popularizar o RPG moderno, mas também criaram uma nova dinâmica: muitos jogadores passaram a buscar um estilo mais teatral, deixando a exploração e a tomada de decisões estratégicas em segundo plano.


Por Que o Hexcrawl é uma Ótima Alternativa?

Jogadores e mestres têm redescoberto o hexcrawl como uma alternativa que resgata a essência da exploração e da tomada de decisões significativas.

O episódio Estudando Hexcrawl #0027 do maravilhoso podcast Café com Dungeon do Rafael Balbi trouxe insights valiosos sobre isso. Guilherme Providello e Ícaro Agostino, criadores do EXCELENTE Península Ancestral discutiram como o hexcrawl devolve ao RPG um elemento perdido: o peso das escolhas. Eles compartilharam como a exploração do mapa, o gerenciamento de recursos e o enfrentamento de perigos criam uma experiência imersiva e autêntica, sem depender de performances teatrais.

Elementos-Chave do Hexcrawl

Para entender melhor como funciona um hexcrawl, aqui estão os principais elementos que o diferenciam de outros jogos:

  1. Exploração:
    O foco principal é descobrir o desconhecido. Cada hexágono no mapa pode conter tesouros, perigos, NPCs ou mistérios. O mestre descreve o que os personagens encontram à medida que exploram, e os jogadores decidem como reagir.
  2. Gestão de Recursos:
    Diferente de jogos onde comida e água são detalhes secundários, no hexccrawl esses elementos importam. Quantos dias de provisões os personagens têm? O grupo consegue carregar tudo o que encontrou no caminho? Essas decisões moldam a aventura.
  3. Tomada de Decisões Significativas:
    O peso da escolha é central no hexcrawl. Ir para o norte pode levar a um refúgio seguro, mas também pode expor o grupo a uma emboscada mortal. Essas decisões são o coração da narrativa.
  4. Menos Cenas, Mais Consequências:
    No hexcrawl, os eventos surgem organicamente. Ao invés de criar “cenas” predefinidas, os mestres respondem com as ferramentas adequadas às escolhas dos jogadores, permitindo que a história se desenrole de maneira imprevisível e natural.

Hexcrawl vs. RPG Teatral

Foi nesse episódio de podcast que notei uma hipótese que eu havia pensado mas não definido tão bem quanto os participantes. O RPG teatral, com foco em cenas e interpretação, surgiu para preencher a lacuna deixada pela ausência de elementos significativos de exploração nos jogos modernos.

No hexcrawl, por outro lado, as decisões estratégicas e os perigos encontrados na jornada têm um impacto tão grande que não há necessidade de “inventar” drama. A personalidade dos personagens emerge das situações enfrentadas. Um guerreiro cansado de lutar para proteger seus amigos ou um mago desesperado ao perceber que está sem recursos para conjurar magia são reações naturais aos desafios, e não um roteiro pré-planejado.


Minha Experiência com Hexcrawl

A emergência de elementos eu presenciei em uma experiência recente que tive com hexcrawl utilizando o belíssimo Manual of Hexterity com o BFRPG em um jogo do nosso coletivo. Ninguém sabia nada sobre o cenário e tinham poucos recursos à mão (o que já o faz bem diferente de jogos modernos em que todos conhecem os monstros e desafios antes de experiência-los), o que fez com que não conhecessem o poder que tartarugas mordedoras tem. De 5 personagens de nível 1, 2 morreram (sem PVs negativos ou salvaguarda de morte), 1 correu sem avisar pra onde ia e 2 voltaram para a cidade sem olhar para trás. Como resultado, um jogador decidiu fazer outro tipo de personagem (behaviorismo no RPG, como eu ri) enquanto os sobreviventes começaram a relatar histórias na taverna da cidade de como sobreviveram a ataques de “tartarugas demônio” sendo salvos pelos amigos que se sacrificaram bravamente por eles.

Em outra sessão no mesmo cenário e com as mesmas regras e jogadores diferentes, um dos personagens quis enterrar suas armas para que os invasores da vila o confundisse com um cidadão e o deixasse ileso. Como o combate começou enquanto escondia as armas, ele decidiu recuperá-las e correr na direção dos inimigos. Parte da responsabilidade pela morte de outro personagem foi o tempo valiosíssimo perdido em uma estratégia que não foi seguida pelo resto do grupo. A dinâmica que emergente foi uma discussão gigante que “sangrou” para fora da sessão sobre a culpa ou não do tatu enterrador de arma.

Nessas sessões, talvez por conhecerem os jogos modernos, alguns jogadores tentaram criar vozes e trejeitos para seus personagens no início. Conforme a exploração avançava, esses detalhes foram ficando em segundo plano e deram espaço para as escolhas diante das opções possíveis.

O que se destacou foi a forma como as personalidades dos personagens se revelaram organicamente. As histórias que ficaram na memória não foram sobre vozes engraçadas, mas sobre as criaturas que enfrentaram, a vergonha que passaram, os recursos que tiveram que sacrificar e as descobertas que moldaram o caminho.


Por Que Experimentar Hexcrawl?

Se você quer uma experiência diferente no RPG, onde cada escolha importa e cada descoberta deixa marcas profundas, o hexcrawl pode ser a resposta. Ele traz de volta a essência dos jogos de exploração, ao mesmo tempo em que desafia os jogadores a pensar estrategicamente e se adaptar a um mundo dinâmico e imprevisível.

Dê uma chance ao hexcrawl. Pegue um mapa, divida-o em hexágonos e desafie seus jogadores a desbravar o desconhecido. Quem sabe o que vocês irão encontrar?

Gostou da ideia? Se quiser mais conteúdos sobre qualquer aspecto desse texto, coloca aqui nos comentários.

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